s dos leitores da imprensa paulista, variáveis que configuram parte da reação conservadora
ApresentaçãoNa edição de 16 de novembro de 2011, a revista Veja publicou extensa matéria sobre a novela Fina Estampa, que a Rede Globo havia transformado em um dos seus principais sucessos no gênero. O pano de fundo simbólico da série, segundo a interpretação da publicação, era “o retrato da ascensão social e da honestidade que os brasileiros almejam”, uma marca ideológica inconfundível da ética apregoada pelos contingentes sociais que, através do caminho do crescimento da renda, haviam inaugurado um novo cenário ético-cultural do país, alguma coisa parecida com a formulação de uma doutrina da emancipação pela via do consumo que os novos padrões de comportamento asseguravam.
Em decorrência dos ventos favoráveis da economia, mas também em consequência de uma política econômica deliberada de abertura do mercado de bens e serviços intermediários para os estratos de menor renda da sociedade brasileira, o país havia ingressado numa atmosfera de regozijo e otimismo, elementos que Fina Estampa reiterava no conjunto dos atributos com os quais a audiência se identificava. Na matéria de Veja, “pesquisas encomendadas pela Rede Globo, as classes C, D e E (...) desejam se ver retratadas na TV – ao contrário do que acontecia antes, quando as novelas se dedicavam sobretudo a saciar a curiosidade dos espectadores em torno da intimidade dos mais ricos. No jornalismo e na dramaturgia, a emissora tem se esforçado para falar com a maioria emergente do Brasil” (1).
A matriz ideológica desse contexto midiático-ficcional, como se pode perceber nos enunciados da revista da Abril, é basicamente conservadora. Em razão de uma série de paradigmas que são construídos em torno dos sujeitos que o vivenciam, vem do apego à estabilidade e à ascensão social o principal constructo simbólico dos segmentos mais atingidos por esse processo, justamente as “classes” C e D e E que, segundo Veja, compõem 90% da população brasileira. O novo contexto, representado pelo paradigma segundo o qual as preferências da audiência são autorreferentes, isto é, voltam-se para a visualização dos processos que ocorriam no interior da sua própria representação e não na representação dos mais ricos, estava longe de ficar restrito ao processo econômico do país, já que o eixo identitário desses grupos, segundo nossa interpretação, não se restringe a essa dimensão, mas a perfis arrivistas (2) de comportamento, base do neoconservadorismo que acabou por se tornar um dos principais eixos mobilizadores do cenário político recente do país.
Nesse sentido, o presente projeto de pesquisa tem o objetivo de identificar o complexo de construções semânticas que reiteram esse padrão de comportamento da audiência da mídia brasileira em momentos diversos a partir de junho de 2013, quando em razão do agravamento das dificuldades econômicas do país, desenha-se a reação conservadora que caracterizou a conjuntura política de média duração em que o país encontra-se mergulhado.
Configuração teórico-conceitual do projeto
O conceito que orienta a análise e a interpretação do material recolhido para a pesquisa tem origem em Pierre Bourdieu, com ênfase para a obra A distinção (3). Trata-se de trabalho no qual o sociólogo francês estabelece o delineamento teórico com que elaborou os padrões de reflexão em torno dos processos de construção simbólica e de formação do capital cultural nos espaços sociais. Para Bourdieu, o consumo de bens culturais “pressupõe um trabalho de apropriação, ou, mais exatamente, que o consumidor contribui para produzir o produto que ele consome mediante um trabalho de identificação e decifração” (Bourdieu, 2011, p.95).
Essa síntese, posta aqui como referencial básico para a apresentação do projeto, remete ao entendimento de que se formam em torno da apropriação dos bens culturais o que Bourdieu chama de “estilos de vida” ou construções distintivas que segmentam os grupos sociais, classes ou frações de classe.
Entendemos, a partir disso, que os atributos simbólicos que dão fundamento às distinções sócio-culturais advém da condição material e econômica das classes sociais e dialeticamente as reiteram, dinâmica essa que explica essa originalidade da referência feita por Bourdieu à dupla relação produzir o produto de consumo pela via da identificação. Em outros termos, a disposição identitária antecipa o consumo de bens culturais, de onde uma certa afinidade subjetiva com as construções imaginárias existentes nas mensagens que são lidas ou vistas. O senso da distinção procede desse contexto e é ele um dos fatores que constrói o capital cultural das classes:
(...) se é verdade que a distribuição do capital econômico e a distribuição do capital cultural (...) apresentam estruturas simétricas e inversas, e que as diferentes estruturas patrimoniais estão, com a trajetória social, no princípio do habitus e das escolhas sistemáticas que ele produz em todos os domínios da prática (...) deve-se reencontrar essas estruturas no espaço dos estilos de vida...” (Bourdieu, 2011, p. 241).
Esses enunciados de natureza conceitual é que devem orientar a definição do protocolo de análise que a pesquisa quer implementar. Falamos aqui de um conjunto de articulações semânticas modulares – e não individualizadas em termos específicos – que permitirão a leitura das matérias divulgadas em veículos da chamada mídia tradicional e que, no contexto de significação da conjuntura política e econômica que emolduram essas articulações, formariam a afinidade subjetiva do leitor referida acima, ou a identificação que precede o consumo dos textos e integram sua construção de significados. Um exemplo: uma matéria que fala sobre o colapso do sistema previdenciário brasileiro e sobre as dificuldades financeiras para que esse mesmo sistema cumpra o compromisso de pagar as aposentadorias de forma a proteger o padrão de consumo do beneficiário do INSS será lida – por hipótese - a partir de uma disposição cultural marcada pela estrutura patrimonial do leitor e de sua posição “defensiva”, isto é, pelo arrivismo que o anima a defender sua condição de classe emergente.
A hipótese principal do projeto é a de que essas articulações semânticas reiteram junto ao leitor um conjunto de percepções distintivas da sua realidade social emergente – eventualmente sob ameaça diante dos signos e da materialidade da crise econômica e política que dominou o cenário brasileiro no período estudado -, percepções essas que fizeram emergir o sentimento arrivista transformado em conservadorismo ideológico de forte conteúdo conservador e antidemocrático.
O enquadramento da análise semântica: à guisa de um protocolo de estudos sobre as construções semânticas do material empírico
A análise que se pretende fazer das matérias selecionadas deve levar em conta um conjunto de oito eixos temáticos que possam estar presentes nas matérias publicadas:
1. Comportamento, valores ético-políticos expressos nas matérias de forma denotativa e conotativa
2. Construções discursivas de abrangência social e teórica sobre a classe média que possam acompanhar o noticiário
3. Matérias relativas a assuntos de Cultura, Educação e Comunicação
4. Matérias relativas à desigualdade sociai e precarização_das condições de existência que possam representar ameaça ao sonho da ascensão social
5. Matérias relativas à desumanização pelo trabalho
6. Matérias relativas a modos de vida, insegurança e condições de habitação, sintomas de crise psicológica de grupo ou indivíduois que reflitam o estresse decorrentes do crescimento do endividamento e da queda do nível de renda
7. Matérias relativas a práticas de consumo e
8. Matérias relativas a práticas econômicas, às frustrações e sucessos do empreendedorismo e referentes às regalias fiscais.
Para cada um desses itens de enquadramento semântico, o projeto que ora estamos apresentando procura antecipar uma seleção de matérias obtidas em outros órgãos da mídia impresa ou artigos de estudo que servirão de parâmetro para a leitura das matérias dos veículos selecionados para o estudo, como descritas abaixo:
1. A heroína dos novos tempos (Veja); Está em curso um retrocesso social em cascata (IHU); Inicia-se um novo ciclo de lutas da classe trabalhadora (IHU); Miami, a xangrilá dos descontentes (piauí); Tea Party à brasileira (piauí); Universos de sentido na população de baixa renda (Matrizes)
2. A classe média, o motor do crescimento latino-americano (El País); Capital cultural, classe e gênero em Bourdieu (ECO_UFRJ; Classe média brasileira_Uma Coreia (Globo); O discurso midiático e a nova classe média (Intercom); Desvendando a espuma I e II (GGN); El mundo de la clase media (La Vanguardia); A classe média vai salvar o Brasil da crise (El País); O mito da nova classe média. O que há por trás dele (Outras mídias); Se fosse um país, classe C brasileira estaria entre os 20 maiores do mundo (Globo); Valorizar a diferença (Globo)
3. O grau zero do conteúdo_Literatura (Valor); O discurso midiático e a nova classe média (Intercom); Política_Cultural_e_interculturalismo no Brasil (Dennis de Oliveira, inédito)
4. A brecha que despedaça o sonho americano (El País)
5. Anfetamina espiritual (Estadão); Com o suor do rosto (Estadão); Fora do expediente_A redução do tempo de trabalho (Valor); Menos-valia_A morte no trabalho (Estadão)
6. A classe C sai do paraíso (IHU); A xangrilá_dos_descontentes_Brasileiros em Miami (Piauí); Condomínios. Dor e medo entre muros (Valor) Condomínios: Todos contra todos (Aliás); Endividamento das famílias chega a 46,3%_o maior em 10 anos_mostra BC (G1); Crédito encolhe e inadimplência sobe em janeiro (Folha); Crise se espalha e já coloca em risco as conquistas da nova classe média (Estadão); Felicidade adjetivada: polifonia conceitual, imperativo social (Intercom); Inflação corrói nova classe média (Globo); Metade das famílias de classe média vive 'enforcada' (Estadão); Pesquisa mostra que a renda da nova classe média muda todos os meses (Estadão); Queda da massa salarial já supera crise de 2003 (Valor); Renda aumenta nas favelas e classe média chega a 65% dos moradores (Valor); Renda per capita do brasileiro diminui e se distancia de países emergentes(Folha)
7. 25 de Março, o termômetro do desejo por luxo (Valor); A classe C vai à Disney e ao Walmart (Valor); Brasil é primeiro campo de testes de produtos da Avon (Valor); Classe C não quer e também não pode elevar o consumo (Estadão); O consumo, o gosto, a ponte e a cerca_(Intercom); O mercado invadiu quase tudo (Globo); Os anos gordos ficaram para trás_classe média (Estadão)
8. A construção do papel do empreendedorismo social._O espírito do capitalismo (Galáxia0; A invenção de um país de empreendedores sociais_Imagina na Copa e seu projeto de Brasil (Compós)
Considerações finais
As questões apresentadas aqui decorrem da investigação realizada na análise feita no período 2014-2017 no projeto individual intitulado Narrativas midiatizadas da cultura na sociedade emergente, desenvolvido no programa de pós-graduação em Comunicação da UMESP. A intenção da pesquisa foi mostrar como os textos que versam sobre Cultura no universo midiático refletem as transformações sociais acontecidas no nosso país. Na proposta original, formulamos a hipótese de que a esfera pública formada pela imprensa nacional construiu um espaço de argumentação que estabeleceu a distinção cultural (categoria que volta a ser referida agora) como traço de reconhecimento vinculado à posse de bens de consumo. Nossos estudos em torno do assunto demonstram que o modelo de crescimento econômico adotado a partir de 2003 – quando da chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República – substituiu o critério dos direitos sociais pelo crescimento do consumo, de onde uma formidável postura conservadora dos segmentos sociais de baixa renda.
Pretendíamos então, quando o projeto foi apresentado em 2014, demonstrar as marcas discursivas dos veículos que voltam agora a ser estudados (Veja e Carta Capital, jornais Valor Econômico e o Globo) como instrumentos de hegemonia do modelo neoliberal – ainda que isso não tenha sido formulado dessa forma no âmbito dos aparelhos ideológicos do Estado e dos instrumentos dos governos de conciliação de classe que se constituíram a partir de 2002 (4). Trata-se, no entanto, de investigação que certamente permanecerá inconclusa caso a pesquisa não avance na direção das narrativas construídas e dirigidas às camadas sociais emergentes, em nossa opinião integrantes de um núcleo ideológico que tem como argamassa política uma forte propensão à rejeição da ampliação de direitos de natureza variada que a sociedade brasileira assistiu emergirem nos últimos anos. O papel da mídia tradicional aqui pode se configurar como uma midiatização orgânica de essência autoritária e segregadoras, condição que cabe à pesquisa científica elucidar.
Quadro de referências bibliográficas para os estudos históricos e teóricos que estão envolvidos no desenvolvimento do projeto
BOURDIEU, P. A distinção. Crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2011.
__________. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004
CARDOSO, A. A construção da sociedade do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010.
CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2007.
CHARAUDEAU, P e MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.
GREIMAS, A.J. e COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.
HALL, S. A construção social das notícias. In: TRAQUINA, N. Jornalismo, questões, teorias, histórias. Lisboa: Vega: s/d.
LACLAU, E. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2011.
MOTA GOMES, I. M. e SOUZA, M.C.J. Media e Cultura. Salvador: UFBA, 2003.
POCHMANN, M. O mito da grande classe média. Capitalismo e estrutura social.
PULITI, P. O juro da notícia. Jornalismo econômico pautado pelo capital financeiro. Florianópolis: Insular, 2013.
SHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
TODOROV, T. Simbolismo e representação. São Paulo: Unesp, 2014.
São Bernardo do Campo, 22 de agosto de 2016-08-20 9
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Notas:
(1) Revista Veja, 16/11/2011, pags 145-153.
(1) Revista Veja, 16/11/2011, pags 145-153.
(2) Falamos aqui de arrivismo como a marca de um comportamento ambicioso que recorre a um complexo de artifícios éticos para consolidar a perspectiva da ascensão social em conjunturas de forte competição individual como são as que caracterizam os processos de expansão capitalista. Na literatura que fala sobre o assunto, vem da interpretação sociológica da ficção europeia do século XIX, em especial a francesa, as principais definições do conceito. Para uma boa síntese dessa discussão, ver A representação do arrivismo social nos romances Le rouge et le noir, de Stendhal, e A mão e a luva, de Machado de Assis, Maria Elvira Lemos da Silva, FFLCH/USP, 2012.
(3) Pierre Bourdieu. A Distinção. Crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2011 (556 p).
(4) Para uma interpretação cuidadosa desse pacto politico conservador construído mesmo sob a égide de um governo de extração ideológica socialista, ver: Singer, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador (São Paulo, Cia das Letras, 2012) e As contradições do lulismo (São Paulo, Boitempo, 2016. Antologia em co-autoria com Isabel Loureiro).